Conhecer a história em geral é muito importante, pois um povo sem história é um povo sem entender o presente. Mas a história da população feminina e LGBT+ com deficiência nos quadrinhos é muito importante por mais outra razão: o resgate de referências históricas, visto que, se deixar para as outras pessoas que divulguem e resgatem tais referências, bem, não dá muito certo.
Mas por que feminina
e LGBT+ com deficiência? Não só porque são as minorias sociais que eu faço
parte (eu sou mulher, sou LGBT+ e autista), mas também porque todos os
preconceitos relacionados a gênero e sexualidade têm uma mesma origem: uma
sociedade normativa e patriarcal, que só aceita um relacionamento quando ele é
entre um homem e uma mulher cisgêneros e heterossexuais, sendo o homem
trabalhando e a mulher cuidando da casa, sempre submissa. Pessoas que quebram
essa norma sofrem, dentre muitas coisas, de invisibilidade, como já discutimos
no parágrafo acima. A intersecção da deficiência se deu não só por causa do meu
lugar de fala como uma pessoa com deficiência, como também a minha percepção
que a intersecção da deficiência é bastante ignorada nos movimentos
feministas e LGBT+s.
Pois bem, vamos lá (para ler sobre as décadas anteriores, assine nossas edições gratuitamente e veja a 15ª edição, pág. 56):
A partir da década de 1990
Dois fatores
aconteceram. O primeiro foi que Art Spielgman, com o seu quadrinho “Maus”, ganhou
um Prêmio Pullitzer em 1992. Isso foi a maior simbologia de que os tempos dos
quadrinhos underground estava chegando ao fim. Os tempos das chamadas Graphic
Novels e de quadrinhos autobiográficos estava começando.
Não que as
antologias ou as tirinhas tivessem chegado ao fim. Na verdade, muitos desses
tipos de trabalho migraram para a internet. E na internet, não é necessário nenhum
contrato, união com outra pessoa (que muitas vezes pode ter diversos
preconceitos). A verdadeira diversidade veio da internet. LGBT+s e mulheres com
deficiência de diferentes biotipos, etnias, etc, pessoas assexuais, transgêneras, bissexuais, dentre outras, começaram a publicar
quadrinhos, e não apenas gays, lésbicas ou até mulheres heterossexuais com
deficiência.
Mas vamos lá,
dentre os quadrinistas, temos a pioneira Ellen Forney, que é bissexual com transtorno
bipolar. Ela começou ainda publicando tirinhas em diversos jornais dos EUA. Em
2006, publicou seu quadrinho Parafusos: Mania, Depressão, Michelangelo E Eu,
que falam sobre o seu processo de diagnóstico de bipolaridade, que aconteceu em
1998. Durante mais de 20 anos a quadrinista é ativista da causa do transtorno
bipolar, da saúde mental e da neurodiversidade.
Nos anos 2000 tivemos duas quadrinistas que quebraram paradigmas e chegaram a trabalhar em
editoras como Marvel e DC Comics: Magdalene Visaggio, mulher transgênera e
autista, e Janelle Asselin, lésbica com depressão e fibromialgia. Visaggio, na
DC, trabalhou em títulos como Mulher-Maravilha, Patrulha do Destino, Batman,
dentre outros. Já na Marvel, trabalhou em títulos como Ms. Marvel e Venom. Além disso, já trabalhou na Black Masc Studios, BOOM! Studios, ComiXology, Darkhorse Comics, IDW, Oni Press, Redline Comics, Valiant
Entreteniments e Vault Comics, trabalhando em títulos como Power Rangers e Transformers. E sempre querendo trazer representatividade de diversas formas
em seus trabalhos.
Já no caso de Asselin, ela trabalhou apenas na DC
Comics, em títulos como Batman, Batgirl e Aves De Rapina. Saiu por um motivo
muito triste: assédio sexual de um colega de trabalho, Eddie Bazarga, e a forma
com que a DC Comics tratou da situação: com descaso. Em 2013, Asselin se tornou editora sênior
do site ComicsAliance. Lá, criou um banco de dados de mulheres quadrinistas em
ascensão chamado "Hire This Woman", para valorizar os trabalhos das mulheres nos
quadrinhos.
Mas essas duas
mulheres são exceção. A maioria das mulheres e pessoas LGBT+s com deficiência
realmente desenvolveu seus trabalhos na internet. John Jennison, um homem
transgênero que faz quadrinhos sobre questões médicas e sua luta contra o
câncer. Keiler Roberts, uma mulher com transtorno bipolar que fala
sobre transtornos mentais em seus quadrinhos (Chlorine Gardens; Rat Time). Carlise Robinson, surdo e transgênere não binárie,
que escreve quadrinhos sobre surdez, LGBT+s com deficiência e questões queer,
além de outros quadrinhos com aventuras mágicas (What QQ; Growing Up Trans; The
Satraisn e The Case Of Victor Gray). Cece Bell, que fez um quadrinho
autobiográfico chamado A Surda Absurda, sobre sua infância como uma menina
surda nos Estados Unidos. Lawence Lindell, um homem transgênero negro com
transtorno bipolar e transtorno de stress pós-traumático que em seus
quadrinhos fala sobre saúde mental, negritude e questões queer (From Truth With Truth: A Graphic Memoir; Couldn’t Afford Therapy, So
I Made This; From Black Boy With Love; The Section). Tee Franklin, uma grande
representatividade como mulher bissexual, acima do peso, negra e cadeirante,
falando de todas essas questões em seus quadrinhos (Bingo Love; Love Is Love:
Tears; Elemnets Anthology: A Blakin; Jook Join), e ainda por cima sendo a primeira
mulher negra a trabalhar na Image Comics, sendo que ela trabalhou no título
Nailbiter. Hatiye Garip, uma turca que é mulher transgênera e surda (Corona Diary; Wild Blossom Honey; dentre outros). Ashanti Fortson, transgênere não binárie, negre e latine com
deficiência que já fez diversos quadrinhos de histórias e aventuras mágicas
(Cress & Petra; Leaf Lace; A Castle of Thorns; Wayward Kindred; Through
Whose Eyes; The White City; Smallness; Before Our Time Is Up; Morel Support; This
Feeling of Comfort e Heritage). Farid
And, um homem transgênero e acima do peso vindo da Malásia que escreve quadrinhos que
misturam aventuras fantásticas com suas experiências como autista, além de
saúde mental (Ryot; Find Me; Synth e Doubles). Carly Usdin, transgênere não
binárie com TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo) que já publicou quadrinhos
para a BOOM! Studios (Hi-Fi Fight Club; The
Avant-Guards). Jessica e Lianna
Oddi, que publicam tirinhas sobre suas vidas como mulheres com deficiência no
blog que as duas administram, The Disabled Life. Andres D. Bravo, um
homem transgênero latino com AIDS vivendo nos Estados Unidos que participou da
antologia Cuentos, que reunia diversos artistas latinos LGBT+, com a história
The Mitode, além de ter feito o quadrinho Eyes Of An Expectator para a
antologia de terror The Night Terrors. E isso dentre muitos outros artistas que
com certeza estão aí fazendo seus trabalhos ao redor do mundo.
Em terras latinas, a ditadura militar havia
acabado. Não só a internet veio, como também a ideia de Graphic Novels e outros
modelos de quadrinhos passaram a invadir as lojas geeks, assim como aconteceu
lá fora. E também como lá, quando a internet veio, a enorme diversidade
também apareceu.
Temos Cecil Honey, uma mulher autista,
transgênera e assexual famosa por suas pixelarts sobre robôs gigantes. Aline
Zouve, que é lésbica, tem ansiedade e
depressão e fala bastante sobre doenças e saúde mental em seus trabalhos (Condição;
Síncope; Som & Fúria; Óleo Sobre Tela; Polaróid; Pão Francês). Labrat Kuma,
uma autista artista birromântica e assexual que lançou seu primeiro quadrinho,
Lamentável, na CCXP 2019. Regi Munhoz, com dislexia e lésbica que fez várias
charges. Ju Loyola, uma quadrinista surda internacional que explora muito
bem os quadrinhos mudos, sendo que seus trabalhos sempre trazem uma ótima
representatividade feminina (The Witch Who We Loved 1 e 2; Perdida Na Floresta;
The Charming; The Promisses Of Hapiness; Everybody Can Dance; Friend Or Enemy; The
Imagination; I’ll Be Back; Heart Of The True Friend; Shoujo Bomb e Gibi De
Menininha 2 (os dois últimos não são quadrinhos próprios, mas antologias que
ela participou)). Ing Lee, que traz muita representatividade sendo uma mulher surda, amarela e bissexual que explora e fala sobre esses temas em seus quadrinhos
(Karaokê Box; Cápsula; Sam Taegeuk). Vanessa Bencz, uma escritora e palestrante
com TDAH que já lançou dois quadrinhos sobre suas vivências com TDAH, A Menina
Distraída e Por Enquanto. Chairim Arrais, uma mulher bissexual com fibromialgia
que fala disso em seu quadrinho sobre a fibromialgia #EuSóQueroDesabafar.
Também já lançou o seu quadrinho Red +18, que é um quadrinho erótico feminista.
E tem outros quadrinhos sobre outras temáticas também: E8; Histórias
Passageiras; Mare Rosso e O Livro De Conselhos Do Gato Dalazar. Thaio Conde, mulher
com deficiência física especializada em ilustração de livros infantis, mas que
já fez uma série de tirinhas chamada Onitirinhas. Luiz Ferrarezzi, transgênero
não binário com autismo que publica seus quadrinhos na plataforma de quadrinhos
independentes "Tapas" (Chained 1 e 2; Pet Planet e Mood). Partes, uma mulher negra,
cadeirante e bissexual, faz desenhos de
mulheres diversas e que tem um
zine, Coisas Que Tentei Dizer E Não Disse, que é sobre amores não
correspondidos. Lucia Lemos, uma mangaká brasileira que tem fibromialgia e que
possui vários quadrinhos sobre contos mágicos em terras mágicas (As Crônicas De
TAO-NYE; Aika 1 e 2).
O Futuro
O futuro diz que cada vez mais
mulheres e LGBT+s com deficiência, sejam elas falando de suas deficiências ou
não (lembrar que as pessoas não são obrigadas a serem militantes de
nenhuma causa), ainda terão que enfrentar muito preconceito e pouca visibilidade, pessoas ainda estigmatizadas, sejam elas de qualquer minoria social. Porém, é esperar que tudo isso melhore e que minorias sociais ocupem cada vez mais espaços.
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