****ATENÇÃO! POSSUI SPOILERS!****
Bela Vingança parece um título muito objetivo, mas Emerald Fennell não se contenta com maneirismo para lançar seu primeiro trabalho como diretora.
Logo de cara, a diretora nos introduz a sua obra com uma montagem de homens comuns dançando em uma balada com a irônica “Boys” de Charli XCX tocando ao fundo. A exibição rápida de imagens conta com muitos closes ginecológicos que, geralmente, são usados para apresentar a sensualidade feminina no cinema. Com essa escolha, Emerald demonstra o quão ridícula considera essa atitude e já nos dá uma amostra de como irá conduzir sua narrativa. No meio disso tudo, a câmera finalmente revela nossa protagonista: uma moça bêbada jogada em um sofá. Um grupo de amigos, todos homens, estão a observando e apostando entre si sobre qual deve tomar coragem para tentar algo. Depois de uma certa insistência, um dos rapazes assume esse papel e acaba oferecendo ajuda, ato esse que ele maneja para levá-la até seu apartamento. Mesmo que ela não possua consciência nenhuma do que está acontecendo, ele avança o sinal. O que tudo indica o início de um estupro acaba sendo quebrado quando Cassandra (Carey Mulligan) se revela sóbria e o confronta. Através desse ato, o princípio que será trabalhado ao longo da obra é revelado: Talvez você não seja o cara legal que tanto acredita ser.
Após isso, pela manhã, vemos Cassie andando pela rua e comendo um hot dog. A sua jornada é acompanhada por uma versão creepy de "It 's Raining Men” que contrasta com um plano preenchido por cores vivas e claras. Em seguida, mais um confronto surge: homens em uma obra a assediam verbalmente. A reação dela? Encarar. Rapidamente, toda atitude confiante deles se esvazia, afinal muitos homens não esperam que mulheres reajam, por isso entram em pânico ao ter sua autoridade questionada e essa foi a questão que Cassandra dominou. Logo descobrimos que suas atividades de enfrentar assediadores durante o dia e enganar abusadores a noite são uma espécie de compensação por se sentir culpada e injustiçada pelo estupro de sua melhor amiga Nina durante os primeiros anos da faculdade. Cassandra também largou os estudos e se isolou para cuidar de sua amiga, mas a construção do filme nos leva a entender que Nina não aguentou o trauma e acabara se suicidando. Dentro dessa atmosfera, existe um motivo sólido para que a protagonista recorra a um arquétipo muito utilizado para representar mulheres em busca de vingança, mas, ao invés dos tons mais neutros e escuros, da ausência ou do excesso de feminilidade e de um fator de mutação sobrenatural, Emerald dá espaço para que a construção visual dela seja o mais perto possível de uma mulher comum de sua faixa etária. Essa escolha formal não se baseia em um realismo fetichista, mas sim corrobora para a eficácia em representar que Cassandra está dentro do sistema, e não é um ponto fora da curva e, por esse motivo, sufoca com um peso que aterroriza a todas suas iguais.
A chegada de Ryan (Bo Burnham), um pediatra cirurgião e ex-colega de classe de Cassie, traz para a vida da protagonista um interesse amoroso e uma obsessão para se vingar daqueles que fizeram mal para a Nina, pois ele ainda possuía contato com as pessoas da época, sendo um elo da protagonista com aquele passado traumático. Esse é o ponto transformação da personagem, em que ela vai se tornando cada vez mais em sua vingança contra essas pessoas específicas ao invés de continuar apenas sendo consumida pela culpa de não ter conseguido salvar sua amiga. Mas, diferente do que pensamos, não há violência nesse processo liderado por ela. A nossa justiceira não é uma Beatrix Kiddo, portanto ela se aproxima mais do enxergamos de uma vingança real: engenhosa, culposa e efetiva. Isso se destaca quando suas primeiras vítimas são uma outra amiga da época e a reitora de sua antiga universidade, mesmo sendo mulheres, ambas desacreditaram de Nina e não só fizeram parte do sistema como, ao decorrer da conversa com Cassie, demonstram que ainda o fazem. Estrategicamente, e com uma alta habilidade de roteiro e atuação, Fennell e Mulligan nos entregam uma sequência que faz tanto o espectador quanto as personagens acreditarem que elas ou algum parente sofreram um abuso e essa atitude abre os olhos das duas para a realidade, afinal, se realmente pode acontecer com elas, então seria um erro duvidar de uma denúncia de abuso.
E, novamente, o segredo para experienciar esse longa é se deixar ser enganado pela fórmula para ser surpreendido. Quando Cassandra confronta o advogado Stanley (Clancy Brown) que judicialmente fez com que Nina fosse desacreditada, tanto o espectador quanto a própria protagonista esperam uma atitude pior do que houve com as mulheres, contudo não acontece, porque ele já não era mais o mesmo de antes, os anos passaram e o arrependimento foi trazido por eles. O filme não é punitivista, mesmo que explicitamente fale sobre vingança, há a iminência do perdão que é trabalhado sutilmente. Reconhecer e mudar são partes importantes para o processo, e Cassie reconhece isso, além de entender que as aparências enganam mais do que imaginava. Tragicamente, a protagonista aprende isso em sua trajetória.
Ambientada como uma comédia romântica, o romance entre Ryan e Cassie floresce. É muito interessante entender como Fennell conseguiu passear por vários gêneros como drama, romance, thriller, mas sem perder sua unidade fílmica, o que nos enfatiza mais ainda que a própria vida é repleta desse carrossel de emoções, e normalmente isso seria bem sútil em outros filmes, como se fosse algo velado porque mancharia a "grande vingadora". Mas Cassandra é humanizada, e mesmo com receios quer ser amada e feliz. Contudo, o casal, em decorrência de uma gravação que revela que Ryan fez parte do estupro de Nina, acaba terminando da pior maneira. Aquela obsessão vingativa que teria sido freada após o encontro com Stanley retorna e ela vai em busca daquele que estuprou Nina: Al Monroe (Chris Lowell) que está realizando sua despedida de solteiro. Essa transição entre o final do segundo ato e começo do terceiro de romance para thriller parece soar estranho, mas completa brilhantemente a ideia de ambivalência da personagem.
Por fim, por estarmos em contato com diversas histórias que seguiram sempre a mesma estrutura da vingança feminina, esperamos um sangrento final que a mulher ganhe forças sobrenaturais e destrua aqueles homens ruins. Mas isso não acontece, Cassie acaba sendo morta por Al Monroe e seu corpo é queimado. Esse resultado anticlimático machuca, mas retrata uma verossimilhança que não é abordada frequentemente em filmes. Queremos ver mulheres se vingando desse sistema injusto e assassino? Nosso senso de justiça arde por isso, mas sabemos que, no mundo real, elas morrem. Entretanto, a personalidade de Cassie durante todo o filme foi construída como muito calculista e, de certa forma, lúcida sobre suas ações, então a possibilidade de ser uma heroína poderia acontecer, mas as chances eram perigosas, ou seja, não existia a ingenuidade de dar tudo certo por ela representar o lado justo da história. O mundo não funciona assim. Ela escolheu isso, porque sua essência já estava interligada com sua obsessão , ou seja, ela precisava fazer, era parte dela, mas isso não impediu um plano B. Mensagens foram planejadas e evidências enviadas para todos que faziam parte do ciclo dos abusadores de Nina sobre o crime que poderia ter acontecido. Portanto, o final é dolorido, ainda que os "bons rapazes" sejam presos, duas jovens mulheres promissoras tiveram que morrer para isso e quantas mais precisaram passar por esse destino para começarem a acreditar em suas denúncias?
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