Crítica | "A Voz Suprema do Blues" e a despedida de Chadwick Boseman



A despedida de Chadwick e a consolidação de Davis são monumentais, mas o filme não consegue ser tão eficaz quanto a peça original.

A produção da Netflix intitulada “A Voz Suprema do Soul” (em inglês, “Ma Rainey’s Black Bottom”) é uma adaptação da peça com o mesmo nome de August Wilson estreada em 1984. Toda a história se passa em um estúdio na calorosa cidade de Chicago dos anos 20, onde Ma Rainey (Viola Davis), considerada como a “mãe do blues”, está gravando um disco com sua banda. Em contrapartida, a velha-guarda representada na figura da cantora, o jovem trompetista Levee (Chadwick Boseman), pensa em produções musicais mais modernas e sonha com a oportunidade de gravar seu próprio álbum com o produtor Sturdyvant (Jonny Coyne). Esse choque entre ambos que não chega em seu ápice e as divagações dos dois lados são os erros e os charmes dessa produção que parece ter minimizado seu alcance técnico para apenas fazer seus protagonistas brilharem.



Normalmente muitas pessoas falam com um certo desprezo o termo “filme de ator”, que se refere às obras cinematográficas em que o enredo depende da entrega dos atores nos diálogos ao invés da situação inversa que é muito mais prestigiada e usada. Isso é um recurso muito utilizado em adaptações de peças de teatro para a telona, pois na linguagem teatral os intensos monólogos e a luz em cima dos intérpretes são fundamentais, algo que geralmente está como segundo plano para o cinema. Contudo, quando George C. Wolfe dirige Boseman como Levee, surge uma magia que funciona. 

Chadwick consegue transitar muito bem entre as duas facetas de seu personagem: o jovem malandro que não se contenta com a forma tradicional de se fazer música e a figura de uma pessoa com o espírito destruído em decorrência de profundos traumas em seu passado. Esse trompetista demonstra sua jovialidade com sua atitude impulsiva em comprar sapatos novos, mas também transparece um lado envelhecido por suas experiências. Essa dualidade que faz com ele se veja mais maduro do que as pessoas ao seu redor, leva Levee a não se permitir ser submisso às vontades de Ma Rainey, criando uma tensão que é segurada durante todo o longa. É brilhante ver um ator que em sua vida pessoal lutava contra um câncer desempenhar com tanta força e talento esse trabalho que muitas vezes se mistura com suas próprias dores e questionamentos, e ainda consegue efetivamente impulsionar toda a narrativa e prender a audiência nas pontas dos pés.


Já sua nêmesis e centro da história, Ma Rainey é uma mulher afroamericana que tem total consciência do mundo racista em que está inserida e exerce o mínimo de seu poder herdado pelo seu sucesso. A presença em cena de Viola Davis é invejável, independentemente de seu papel a atriz chama as luzes para si, o que faz tudo ser mais interessante quando seu personagem requer uma altivez que é capturada com muita leitura corporal e falas objetivas. Existe um contraste muito interessante da artista que em suas performances está sempre muito colorida e canta melodiosamente e da pessoa que possui dores derivadas de suas experiências de vida que a tornaram sólida e concisa. Seu amor e cuidado são demonstrados com atitudes, como prometendo a seu sobrinho gago que ele iria gravar a passagem inicial do álbum, mesmo que para isso precisaria enfrentar os produtores, afinal ela sabe que a sua voz está em jogo, e enquanto eles não a possuírem gravada, ela é quem dá as cartas. Disputando espaço musical, interesses amorosos, dominância geracional e personalidade, essa é a maneira como gira a dinâmica entre Ma Rainey e Levee.

Entretanto, todas essas histórias ficaram muito isoladas, graças às escolhas do roteiro e da direção. Mesmo que o enredo ocupasse apenas um só lugar, a cantora e o trompetista passam a maior parte do tempo em cômodos separados e construindo seus próprios micro-universos em que desempenham o papel de regente. O confronto direto nunca acontece de forma intensa como as declamações de ambos, George opta por uma quebra de Levee da banda, talvez por estar um pouco inseguro que os atores principais pudessem se ofuscar. Além disso, o modo que o diretor filma não consegue fazer com que o espectador se sinta em um filme. Mesmo com as escolhas de enquadramento que ora fazem Levee parecer estar diretamente com Deus em sua contestação, ora entregam a dura sensibilidade de Ma Rainey, elas não conseguem quebrar a estrutura teatral, o que dá a impressão de estar assistindo uma peça filmada.

Portanto, embora os atores estejam em seu melhor, tanto em questão de atuação quanto de caracterização, um filme de ator ainda precisa de uma direção competente para que a entrega seja total. Mas, cinema é arte e conversa com a nossa atualidade de maneira que vai além da técnica. Dito isso, em meio a tristeza que a morte precoce de Chadwick causou em milhões de pessoas, o assistir em seu esplendor e entregando sua melhor performance é um conforto que vamos levar para a vida com muito carinho.

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